E se em vez de droga, a planta da cocaína fosse alimento? Não, não trabalhamos com substâncias ilícitas, mas precisamos parar de olhar para os alimentos e todas as suas partes como “bons” ou “ruins”. Tudo pode ser veneno ou remédio, só depende da dose. O upcycling de folhas de coca mostra que o que era droga pode ser alimento.
Voltando à planta, da mesma folha que se faz cocaína, se faz um ingrediente para redução de açúcar em alimentos e bebidas. Do veneno de cobra veio um remédio para hipertensão. Da toxina botulínica que causa uma doença paralisante se faz um cobiçado cosmético injetável.
Já falamos sobre vários tabus alimentares, desde a cannabis à urina, passando por sangue e ossos, agora é hora de falar dela, a coca, a planta que origina a cocaína, mas de um jeito que você nunca viu.
O ingrediente desenvolvido a partir da folha de coca, considerada uma das mais ilícitas e estigmatizadas do planeta, pode reduzir o açúcar nas bebidas em até 40%. A planta da coca é mais conhecida por seu alcalóide psicoativo, a cocaína, mas na sua forma descocainizada, o extrato dessas folhas encontra um propósito diferente: reduzir o teor de açúcar nas bebidas adoçadas com açúcar.
Fundada em 2019 no Canadá, a fabricante Power Leaves extrai a coca com etanol e água purificada e destrói seus alcalóides. Uma auditoria terceira verifica se a coca resultante é totalmente isenta de narcóticos ilícitos.
O etanol é removido por meio de um processo de destilação e o resultado é seu ingrediente principal, o Coca X. Este ingrediente é um intensificador de sabor que reduz o amargor de bebidas, porém, há quem defenda que ele deva ser classificado como aromatizante e usado sozinho, pois possui notas de baunilhas e de frutas, mascarando outros sabores.
E a Coca-Cola?
Se você se perguntou se esse ingrediente tem alguma relação com o de outra bebida famosa que também tem coca no nome, acertou. A ideia da Power Leaves é quebrar o monopólio do extrato de coca descocainizado e disseminar seu uso em toda a indústria de alimentos.
Mas saiba que a Coca-Cola não foi a primeira a usar extrato de coca, em 1800 o Vin Mariani, vinho com propriedades revigorantes, já era comercializado.
A pergunta que não quer calar é: a Power Leaves está competindo com o tráfico de drogas? Segundo a empresa, não. Porque o cultivo da folha de coca cresceu muito ao longo das últimas décadas, o que significa que a oferta de coca ultrapassa a procura de até mesmo do setor da cocaína.
Comparada com outras culturas tropicais, como o café ou o cacau, a coca pode melhorar a produtividade num prazo mais curto, com três a quatro colheitas por ano. O arbusto é perene e vive 70-100 anos, sendo uma fonte sustentável de renda para comunidades locais.
A Power Leaves tem trabalhado para desenvolver cadeias de abastecimento legais para extrato de folha de coca. Através de um acordo com uma comunidade indígena na Colômbia, a empresa estabeleceu a primeira fonte legal de extrato de coca descocainizado no país, fornecendo esse extrato para empresas de alimentos e bebidas.
E os resíduos de produção? Sim, upcycling de folhas de coca é a resposta!
A Coca X não é o único ingrediente no pipeline da empresa, afinal, o que fazer com todo o resíduo da produção? É aí que entra o Coca E, ingrediente upcycled feito a partir do etanol com compostos residuais usado no processo do ingrediente anterior, ideal para uso em bebidas alcoólicas.
E não para por aí, ainda há potencial para isolamento proteico da coca no futuro, já que a folha contém mais de 20% de proteína. E no fim da cadeia, o último resíduo vira fertilizante, ou seja, tudo é aproveitado em seu máximo valor, começando por alimentar as pessoas e por último nutrir o solo, que é a essência do upcycling.
A expectativa é ter os primeiros produtos no mercado até o final do ano nos EUA e Europa.
O upcycling de folhas de coca também pode gerar cerveja
A cervejaria boliviana na destilaria El Viejo Roble é produtora da Coca Beer, uma cerveja que leva folhas de coca comercializada apenas na Bolívia.
A legislação avança aos poucos
Os produtos à base de folha de coca estão limitados aos seus países de origem, mas o governo boliviano luta pela descriminalização.
Em 2023, o governo apresentou um novo pedido à Organização Mundial da Saúde (OMS) que pela primeira vez permitiu a realização de um estudo sobre as propriedades da planta. O estudo pretende determinar a quantidade máxima de alcaloide que cada produto legal derivado da folha de coca pode conter e assim poder exportá-lo. Este talvez seja o início do processo para excluir a folha da lista internacional de substâncias psicoativas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo o JusBrasil, a legislação brasileira diz que embora não seja droga em si, a folha de coca é a base para sua fabricação. Então ela se encaixa no § 1º, I, do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, que criminaliza o transporte de matéria-prima destinada à preparação de drogas.
Será que agora, com a promessa da redução de açúcar na indústria de alimentos, o upcycling de folhas de coca será uma realidade e enfim teremos um ingrediente como este legalizado por aqui?
Referências: Food Navigator, Mugglehead Magazine, Infomoney
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